''Saravá, Michael
Jackson!''
por Carlos Drummond de Andrade
"Para Presidente da República, Michael Jackson!
Ainda não ouvi este brado, mas daqui a pouco ele soará. Nas areias do Leblon e
nas noites do Asa Branca. Na feira de São Cristóvão. Nas tertúlias do Jockey
Club. No Maracanã. Na Cobal. No Lar das Donzelas Incasáveis. Embaixo dos
viadutos e passarelas. No bote dos pescadores. No céu estrelado.
Michael Jackson, por que custou tanto a aparecer, Michael Jackson? Os
deuses desapareceram há milênios, o grande Pã morreu ninguém se lembra mais
quando. As religiões, sentindo-se solitárias, abraçaram-se ecumenicamente,
porém nenhuma apresentou um fato novo, de importância cósmica.
Foi preciso que um útero... Não. Michael Jackson, o divino, nasceu da
barriga de um meteoro ou da pura luz ou das entranhas do Fatum. Tinha que
nascer diferente, para crescer diferente e seduzir diferente a
humanidade.
Surgem apelos veementes para Michael Jackson fazer isto e aquilo, pagar
nossos credores estrangeiros, ressuscitar o PDS, garantir a safra da soja. Só
Michael Jackson poderá acabar com a fome no Brasil e com a saúva também.
Se Michael Jackson não pacificar os casais desavindos, quem mais o fará?
Seu pansexualismo é proposta de vida para a humanidade fatigada disto e
daquilo, em fatias tediosas; é ou tudo ou nada. Jackson explode. Michael
levita. E nós com ele.
O disco de MJ substitui plenamente as Epístolas de São Pedro, São Paulo
e São Tiago, e até a novela das 8. Colossenses, Tessalonicenses, Coríntios (e
corintianos também), detende-vos e escutai a Voz que vem de Michael. A voz e os
gestos. Escutai os gestos, as lantejoulas pretas, a cabeleira incendiada no
comercial de tevê, escutai o lobisomem em que ele se transformou.
Epa, Michael, mas você abusa da nossa capacidade de admirar. Você, como
a gasolina, excede; super excede a gasolina. As revistas brasileiras que buscam
o sensacional só têm uma capa: você. Nem Roberta Close nem Reagan nem Maluf
podem contigo. Estás em toda parte.
Ouvi dizer que as novas notas de cem mil cruzeiros, em fabricação na
Casa da Moeda, terão a efígie cantando Beat It. É uma jogada
inteligente para recuperar a confiança no valor das cédulas.Com algumas MJ-100
mil na bolsa, as madames poderão ir confiantes ao supermercado, para a compra
de abobrinha e sabão branco-total.
Porque Michael, como já se proclamou, é o astro total. Tótem.
Totipotente. Como ele engasga bem! Até engasgar é uma arte, e Michael a domina
como a um potro selvagem. O wet look dele é de endoidar
qualquer Clodovil.
As crianças do mundo inteiro o adoram como a um meninão batmânico e
frágil. O Senador Amaral Peixoto acha que ele pode salvar o Brasil, se de todo
o Presidente Figueiredo não quiser incumbir-se dessa chateação.
O Deputado Ulysses Guimarães não faz restrições ao garoto que integra os Jackson
Five - e isto é dizer o máximo. Em sua dança, Dalal Achcar não bota
defeito. Dizem que o Athayde, da Academia Brasileira de Letras, o julga
merecedor de uma poltrona imortal, mesmo sem vaga, principalmente sem: é mais
glorificador.
Michael Jackson quanto custa para o bolso do Brasil? Em discos, cassetes,
videocassetes, bugigangas que trazem o nome ou a figura dele? Pergunta
evidentemente estúpida, que só formulo aqui para frisar como um acontecimento
cultural de tamanha grandeza pode inspirar mesquinhas indagações
contábeis.
O que gastamos para consumir Michael Jackson, e não Nijinski ou a
Malibran, notoriamente falecidos, é nada em comparação como o gozo
sensorial-espiritual que ele nos proporciona. E ele, por sua vez, não nos deve
nada.
Em face da carência nacional de ídolos, natural que importemos um, mais
um. Não poderíamos estabelecer reserva de mercado para os imitadores nacionais
desse elfo cantarino. Queremos o original, o único, o sem-limite, o tal-total.
O Velô, o Mílton, o Chico, o Tom, a Ramalho, o Matogrosso, o este e o
aquele que se cuidem, se quiserem que continuemos a amá-los e frequentá-los.
Michael não vem com espada de fogo para trucidá-los, mas, se não andarem
direitinho, o bicho vem e o bicho pega.
O espaço ocupado por ele abrange o nosso universo, e para haver
convivência pacífica é necessário que todos reconheçamos a originalidade, a
supra=genialidade de Jackson, com ou sem família, que isso de família para ele
são babados ou papelotes.
A família Jackson é um adjetivo, Michael não é só o substantivo, é o
dicionário; a enciclopédia, a tradição cantada e pulada, do homem das cavernas
até o homem das estrelas.
Palmas para Michael Jackson. Ele merece. Tanta gente por aí que não merece,
ganhando, mais do que aplausos: posições, mordomias, o mel da vida. O americano
tem tudo isso e nos tem também a seus pés, como é devido. Inclino-me e declaro,
altissonante: que seria o mundo se não existisse Michael Jackson e seu show Victory?
Saravá, Mic!"
*Artigo publicado na revista
brasileira Manchete em 1984
Carlos Drummond de Andrade escreveu este artigo aos
82 anos de idade. Ele foi um poeta, contista e cronista brasileiro,
considerado por muitos o mais influente poeta brasileiro do século XX.
Ele também teve sua efígie impressa nas notas de NCz$ 50,00
[cinquenta cruzados novos] em circulação no Brasil entre 1988 e 1990.
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*Artigo compartilhado conosco
pela leitora Regina Bett a partir do blog Sweet
Michael
*Imagem da matéria da revista digitalizada pela Regina, a quem eu agradeço o
compartilhamento.
*Demais imagens adicionadas pelo Blog “Cartas para Michael”.
- Fonte: cartasparamichael.blogspot.com