A ESSÊNCIA DO SER - XXIII
"MICHAEL JACKSON E A PELE DO AR"
BY MINISTRO CARLOS AYRES BRITTO
Nunca se viu ninguém (nem mesmo o fenomenal Elvis
Presley) que desse tanta liberdade aos quadris, mãos, pernas e expressões
faciais.
Michael Jackson foi um dançarino pop. Nisso, todos
os críticos estão de acordo. Logo, um dançarino popular ou não clássico. Não
erudito. Mas um dançarino que trouxe para os palcos do mundo uma dança de rua
tão criativamente repaginada que despertava emoções coletivas do mais puro
encantamento.
Quero dizer: independentemente da faixa etária ou
da procedência geográfica dos espectadores, uma atmosfera de delírio visual
envolvia Michael Jackson em cena. Nunca se viu ninguém (nem mesmo o fenomenal Elvis Presley) que desse tanta liberdade aos
quadris, mãos, pernas e expressões faciais, num contexto rítmico de impecável
marcação e irresistível contágio.
Caprichava-se na interpretação vocal de suas
músicas, Michel Jackson o fazia para melhor agradar aos ouvidos da própria
dança. A garganta era personalíssima, porém os tímpanos a que primeiro se
dirigia eram impessoais. Diga-se o mesmo das melodias, acordes, arranjos,
instrumentos musicais, figurinos, pois todas essas coisas iam entrando pelos
poros da dança para compor com ela uma só realidade avassaladoramente bela.
Era essa monolítica unidade do que há de mais
corpóreo e mais etéreo que fazia a diferença. O multiverso a se transformar em
universo (holisticamente falando), no desempenho cênico daquele homem frágil
como porcelana e ao mesmo tempo forte como um rochedo.
E sob tal ambiência é que Michael Jackson regia uma
infinitude de coisas para sacralizá-las no altar do seu incondicional amor pela
dança. Ele próprio a ceder espaço para ela, mais e mais, como um gênio da
lâmpada que se desprendesse da sua originária prisão para atender aos desejos
daquela mulher que lhe arrebatava a alma (pois
a dança nunca deixa de ser uma mulher, a mais leve e curvilínea delas).
Assim é que a dança reconhecia em Michael o seu
mais fervoroso cultor pós-moderno e se permitia apropriar-se dele. Tão
possuidora dele que a um dado momento parecia que somente ela estava no palco.
Uma dança entregue a si mesma, tão enlouquecida de beleza que já não havia
nenhum dançarino a protagonizá-la.
Ela -e só ela- resplendia na objetividade absoluta
da mais absoluta arte plástica. Por isso que Michael Jackson, inteiramente
açambarcado pela dança, de repente já não fazia parte dele mesmo, porém dela.
Dissolvia-se na sua própria dança, por havê-la conduzido ao esplendor quântico
da partícula que se faz onda. Da matéria que se faz éter. Do mármore bruto que
se faz "A Pietà" de Michelangelo.
Foram muitas, portanto, as fusões que se
processaram na trajetória existencial de Michael Jackson. Fusão da mais
espontânea dança de rua com a mais elaborada técnica da dança erudita. Fusão da
cultura negra com a branca, revelada até mesmo no alisado dos cabelos
renitentemente crespos e na progressiva brancura da tez de todo o corpo.
Fusão da graça virginal dos meninos com a mais
séria compenetração profissional dos adultos. Da volubilidade assustada dos
olhos com a tenacidade de um espírito capaz de todos os sacrifícios pela arte.
Fusão, em suma, do dançarino e da dança. Dança em cujo coração o dançarino
penetrou tão fundo como se chegasse, enfim, à sua definitiva casa interior.
Hoje, um ano depois de sua passagem física por este
mundo, Michael Jackson como que sobrevive na pele do ar. Permanece com a sua
dança hipnótica na pele do ar que a humanidade respira, com os demais seres
viventes deste arrepiante, emocional planeta azul.
"Thriller"...
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CARLOS AYRES BRITTO é ministro do Supremo Tribunal Federal, poeta
e membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas.
Crônica escrita em 25 de junho de 2010.
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